Durante boa parte da sua vida, Shen Ying sentia-se decepcionada com o mundo em seu redor. Ela observava a ascensão económica da China nesta pequena cidade no Vale do Rio Yangtze, onde vivia uma vida confortável de classe média, gerindo uma loja de conveniência num centro comercial. Ainda assim, a prosperidade parecia não significar muito.
Ela temia perder a loja caso não agradasse as autoridades correctas. Escândalos recorrentes sobre a insegurança alimentar, ou comida para bebés contaminada feita por empresas que já tiveram boa reputação, deixaram-na desapontada. Ela lembrava-se dos valores que o seu pai havia tentado incutir – honestidade, economia, justiça –, mas disse que seria impossível viver esses ideais na China de hoje.
“Fico desapontada com a conduta desonesta na sociedade”, afirmou.
Então, há cinco anos, uma organização budista de Taiwan chamada Fo Guang Shan, ou Montanha Iluminada de Buda, começou a construir um templo nos arredores de Yixing. Ela começou a frequentar as reuniões e estudar os textos – e isso mudou a sua vida.
Shen e o marido, um empresário bem sucedido, passaram a levar uma vida mais simples. Abriram mão de produtos de luxo e fizeram doações para ajudar crianças necessitadas. E antes do templo abrir as portas no ano passado, ela deixou a sua loja de conveniência para abrir uma loja de chás, dedicando os lucros para a caridade.
Em toda a China, milhões de pessoas como Shen começaram a participar de organizações religiosas como a Fo Guang Shan. O seu objetivo é preencher o que acreditam ser o vácuo moral deixado pelos ataques aos valores tradicionais ao longo do último século, especialmente sob o comando de Mao, assim como a adopção de um capitalismo selvagem.
Muitas pessoas querem mudar o país – torná-lo mais cheio de compaixão, mais civilizado e justo. Mas, ao contrário dos dissidentes políticos e de outros activistas oprimidos pelo Partido Comunista, eles esperam mudar a sociedade chinesa por meio da devoção pessoal e trabalhando com o governo, ao invés de contra ele. E, de modo geral, as autoridades não parecem incomodar-se com o grupo.
Fo Guang Shan talvez seja a mais bem sucedida dessas organizações religiosas. Desde que chegou à China há mais de uma década, o grupo criou centros culturais e bibliotecas em grandes cidades chinesas, imprimindo e distribuindo milhões de livros por meio de editoras estatais. Embora o governo esteja controlando com mão de ferro a maioria das organizações religiosas estrangeiras, o Fo Guang Shan floresceu, espalhando a poderosa mensagem de que acções individuais de caridade podem ajudar a remodelar a China.
Contudo, isso só foi possível por meio de ajustes e acordos. O governo chinês desconfia das actividades espirituais que não controla, proibindo a mistura de religião e política. Isso levou o Fo Guang Shan a limitar a sua mensagem social e até mesmo o seu conteúdo religioso, concentrando-se ao invés disso em promover o conhecimento da cultura e dos valores tradicionais.
Essa abordagem angariou apoio nos altos escalões do governo; o presidente Xi Jinping é um dos apoiantes do grupo. Porém, a sua relação com o partido levanta uma questão importante: o grupo será capaz de mudar a China desse jeito?
O Fo Guang Shan é liderado por uma das figuras religiosas mais famosas da China actual, o Venerável Mestre Hsing Yun.
Aos 89 anos de idade, ele é praticamente cego e uma devota repetia as questões para que ele pudesse ouvi-las. Porém, a sua mente continua ágil, e ele escapava com facilidade das questões que pudessem incomodar as autoridades chinesas. Quando perguntei o que ele esperava conquistar com a disseminação do budismo – o proselitismo é ilegal na China – as suas sobrancelhas arquearam-se, mostrando que ele achou graça na pergunta.
“Não quero disseminar o budismo. A única coisa que faço é promover a cultura chinesa para purificar a humanidade”, afirmou.
Quanto ao Partido Comunista, ele não tem dúvidas: “Nós budistas estamos ao lado de quem estiver no poder. Budistas não se envolvem em política”.
Contudo, isso não foi verdade durante a maior parte da vida de Hsing. Nascido nos arredores da cidade de Yangzhou em 1927, ele tinha 10 anos quando entrou para um mosteiro por onde ele e a mãe passaram quando saíram em procura do seu pai, desaparecido durante a invasão japonesa na China.
Lá, ele foi influenciado pelas ideias do Budismo Humanista, que pretendia salvar a China através da renovação espiritual. O movimento argumentava que a religião deveria ser o foco deste mundo, e não o do além. Dizia também que o clero deveria preocupar-se com as pessoas, chamando os religiosos a ajudar a mudar a sociedade por meio da justiça e da compaixão.
Depois de fugir da Revolução Comunista, Hsing levou essa mensagem para Taiwan, onde fundou o Fo Guang Shan na cidade portuária de Kaohsiung, em 1967. Ele tentou tornar o budismo mais acessível às pessoas comuns por meio de uma renovação da sua imagem e da adopção de tácticas do mercado de massa. Deu palestras em estádios lotados, em cerimónias parecidas com cultos evangélicos. Construiu um parque temático com apresentações multimédia e máquinas que exibiam imagens de santidades budistas.
Essa abordagem teve um impacto profundo em Taiwan, que na época era bastante parecida com a China actual: uma sociedade em processo de industrialização que temia ter dispensado os valores tradicionais na busca pela modernização. O Fo Guang Shan tornou-se parte de um avanço popular da vida religiosa. Muitos estudiosos afirmam que o movimento também ajudou a lançar as bases para a transformação da ilha numa democracia vibrante, por meio do fomento de uma cultura política comprometida com a igualdade, a civilidade e o progresso social.
O Fo Guang Shan espalhou-se rapidamente, gastando mais de 1 bilhão de dólares em universidades, faculdades comunitárias, jardins de infância, uma editora, um jornal diário e uma estação de TV. Actualmente, a religião conta com mais de mil monges e monjas, além de mais de um milhão de seguidores em 50 países.
O grupo prefere não fazer estimativas do número de fiéis na China, onde o governo os recebeu inicialmente com desconfiança. Em 1989, um oficial que fugiu do massacre da Praça da Paz Celestial procurou abrigo num templo do grupo em Los Angeles. A China retaliou com a proibição da entrada de Hsing no país.
Porém, mais de uma década depois, Pequim começou a ver Hsing com outros olhos. Assim como muitas pessoas da sua geração que nasceram na China e viviam em Taiwan, ele é favorável à unificação da ilha e da China – uma prioridade para os líderes comunistas.
Em 2003, o governo permitiu que visitasse a sua cidade natal, Yangzhou. Ele prometeu construir uma biblioteca e, alguns anos depois, estabeleceu um centro de 40 hectares que actualmente abriga quase dois milhões de livros, incluindo uma colecção com cem mil volumes de escrituras budistas.
Embora o governo de Xi tenha aumentado as restrições ao cristianismo e ao islamismo no país, o Fo Guang Shan recebeu autorização para abrir centros culturais em quatro cidades, incluindo Pequim e Xangai. Actualmente, entre os alunos da organização encontram-se diversas autoridades do governo.
Quando Shen assumiu a loja de chás, demorou a entender o que significava ser budista. Ela admite que, no início, buscava obter mais lucro para o templo, utilizando óleo de qualidade inferior na cozinha.
Contudo, o seu marido foi contra. A China está repleta de escândalos de restaurantes que utilizam ingredientes baratos e perigosos, e ele argumentou que bons budistas deveriam servir de exemplo.
“Isso me fez perceber que a fé nos dá padrões morais mínimos. Ela ajuda-nos a tratar os outros como nossos semelhantes”, afirmou Shen.
Por Ian Johnston – New York Times
Fonte: Portal do Budismo