Joana Dias é professora de chinês e também tradutora. Esteve em Guimarães, no dia 26 de Setembro para nos partilhar os ensinamentos da Mestra Juerong sobre o tema «A Compaixão na vida prática». Agradecemos muito a sua dedicação e bondade, num trabalho tão árduo mas que tem impacto em tanta gente. Nesta breve entrevista, Joana Dias partilha connosco alguns dos seus pensamentos e experiências sobre este trabalho de tradução e sobre a compaixão.
Como é que te preparas para estas traduções tão exigentes?
A preparação tem sido contínua nos últimos anos. A Presidente da associação a Sra. Elisa Chuang teve a amabilidade de passar mais de um mês a dar-me formação em temas budistas, aquando da primeira tradução para o templo em 2010. A Elisa, sendo uma empresária de renome muito ocupada, conseguia sempre combinar comigo duas ou três vezes por semana, em que partindo de um discurso modelo do mestre budista da altura, que aliás os chineses fazem sempre questão de fornecer aos intérpretes, fazíamos a tradução, palavra a palavra, conceito a conceito. Agradeço imenso a ajuda e dedicação dela. Foi assim que comecei a conhecer o budismo. Através da necessidade de compreensão dos conceitos, para transmissão através da língua. Antes disso, era uma visão muito abstrata e distante que tinha.
Como consegues adaptar a realidade do budismo chinês para a nossa realidade ocidental e não te «perderes na tradução»?
Hehe, essa é a parte mais difícil, porque as imagens usadas pelos chineses podem ter um eco diferente no entendimento dos portugueses- e até a forma argumentativa usada no discurso, que é, muitas vezes, a de expor dois lados/conceitos opostos e de apresentar uma conclusão que muitas vezes é ambígua ou que inclui ambas as visões no final de cada assunto. Já para não falar nas piadas, ou dramatização das histórias, que quando vertidas para Português têm de ganhar uma forma bastante diferente, pois o humor chinês é bastante diferente do nosso.
No entanto, a mestra Juerong foi a oradora budista que até hoje se adaptou mais ao intérprete, talvez por estar sediada em França, mas também por ser uma pessoa muito humana e perspicaz. Ela sabia exatamente o que queria transmitir e disse-me, no dia da palestra, à hora do pequeno-almoço, qual a linha de pensamento que ia seguir, à medida que ia percorrendo os tópicos que já me tinha feito chegar uma semana antes.
Ela tinha a preocupação de “fazer chegar a compaixão à vida das pessoas”, e que elas “entendessem o que era, por palavras simples e com exercícios práticos”. Foi muito engraçada, disse-me: “Não te preocupes que não vou fazer citações dos sutras, podes ficar descansada!”- Ahaha, ou seja, não ia usar Chinês Antigo (a língua dos Clássicos budistas) para explicar a compaixão. Ela estava preocupada que eu compreendesse a mensagem, para que ao transmiti-la ela pudesse chegar o mais objetivamente possível à audiência.
Tens alguma frase ou ensinamento da Mestra que te tenha tocado mais?
Sim. Quando ela explicou que o caminho para a compaixão é o da compreensão do ódio. Normalmente no Ocidente dividimos muito as coisas: há o que é bom e há o que é mau. E são opostos eternos e imutáveis. No oriente não. Por exemplo, nos sutras budistas mais antigos que foram traduzidos para Chinês Antigo (e são a maior fonte de textos antigos budistas preservados, a par com os textos em Pali, segundo sei), não existe uma divisão, nem um bom nem mau a nível de expressão de uma ideia.
Nos sutras budistas, os opostos são apresentados para desfazer o nó entre eles; a compaixão desfaz o ódio e só o cessar do ódio pode levar à verdadeira compaixão. Assim como a sabedoria permite ultrapassar o sofrimento e o sofrimento nada é mais do que uma compreensão errada da forma de funcionamento do universo ou seja, é uma falta de sabedoria.
Então, quando a mestra Juerong explica que o caminho para a compaixão é também o caminho do ódio, mas que um aumenta quando o outro diminui, sendo duas faces da mesma moeda, é algo surpreendente, pois já está a transformar a nossa forma “fixa” de pensar, que muitas vezes nos afasta do caminho da mudança. Só ao anular as causas do ódio podemos caminhar em direção à verdadeira compaixão.
Como foi, para ti, esta palestra em Guimarães?
O tempo estava lindo, a sala da palestra era muito confortável, fresca e pacífica, com a janela enorme de vidro que dava para o jardim. Eu por acaso tive um problema de saúde e só adormeci às 5 da manhã da véspera, ahahah. Estava a ver que não tinha forças para falar. Mas “hora a hora, Deus melhora” e consegui.
A mestra Juerong é muito amigável, estava cansada, chegara na véspera de Paris. Pois anda sempre em viagem, dentro de França e pelo mundo, para participar nas atividades da BLIA Internacional, mas nunca perde a paciência e a dedicação à causa. As mestras da BLIA são mais ocupadas que os CEOs das grandes empresas europeias, é uma associação com muitos membros a nível internacional e muitos eventos. Gostei de ver a sala cheia e de sentir o feedback positivo das pessoas. Houve uma senhora que me emocionou, quando falou da filha, achei uma partilha muito profunda, e uma coragem de exposição, uma verdadeira vontade de mudar as causas e condições.
Quais foram os conselhos que a Mestra deu para praticarmos a compaixão?
A mestra apresentou um exercício muito simples de “contemplação compassiva”, por níveis, para podermos praticar a compaixão no nosso dia-a-dia. Devemos começar por sentir alegria pelas pessoas que gostamos mais, e no fim do exercício, devemos conseguir fazê-lo pelas pessoas de que não gostamos ou com as quais estamos em conflito. Se nós compreendermos que a infelicidade do outro é o que provoca a sua insatisfação em relação a nós ou a sua necessidade de conflito connosco, somos capazes de nos colocar no seu lugar e pensar “ o que estará esta pessoa a sentir para reagir assim? O que é que lhe aconteceu? O que é que ainda não compreendeu?” e tentar alterar essa situação, trazendo alegria e compreensão, e assim desfazer o seu sofrimento. Devemos ser capazes de pensar: “o que é que eu posso fazer para o ajudar? O que é que lhe posso ensinar? O que é que eu posso fazer para lhe aliviar a sua dor?-“Com+paixão”: sofrer com o outro, ou entender o sofrimento do outro. Nós ocidentais, também temos esse conceito.
Qual a maior lição que a compaixão nos pode dar?
Temos de ter compaixão por nós mesmos, no nosso processo de aperfeiçoamento. Pois temos muitas falhas, temos de as aceitar e compreender, para podermos avançar no caminho da virtude.