Ao mestre raiz e a todos os mestres de linhagem
Agradeço o Dharma e as transmissões do Dharma
Possam todos os seres beneficiar da sua luz
Possa eu ser um portador dessa luz.
Reconhece todas as coisas como sendo assim:
Uma miragem, uma nuvem castelo
Um sonho, uma aparição,
Sem essência, mas com qualidades tangíveis.
Reconhece todas as coisas como sendo assim:
Como a lua num céu brilhante
Refletida num qualquer lago límpido,
Embora para esse lago a lua nunca se tenha movido.
Reconhece todas as coisas como sendo assim:
Como um eco que provém
De música, sons e choro,
Embora nesse eco não exista melodia.
Reconhece todas as coisas como sendo assim:
Tal como o mágico faz ilusionismo
Com cavalos, bois, gatos e outras coisas,
Nada é o que aparenta ser.
Samadhi Raja Sutra
Buddha
Nada é o que aparenta ser…no entanto tudo tem qualidades tangíveis. No que aparenta ser uma tremenda contradição está uma das grandes verdades fundamentais do Dharma: a vacuidade (Śūnyatā). Se não for devidamente estudado e não se fizer uma profunda reflexão e permear tudo com meditação, é grande o risco, mesmo para budistas, de cair no niilismo ou no eternalismo.
Os fenómenos não têm existência intrínseca porque não existem por si só. Se assim fosse, todas as coisas seriam eternas e, logo, permanentes, imutáveis. Segundo esta mesma linha de pensamento nada surgiria dos fenómenos permanentes, pois algo que não muda não pode dar origem a alguma coisa, pois isso seria uma mudança. Também não são inexistentes uma vez que se manifestam. Se se manifestam é porque existem. Se nada fossem, nada deles poderia surgir.
Todo o universo está em permanente mudança. Mudança que se manifesta no microcosmos de forma subliminar para os nossos órgãos dos sentidos e no macrocosmos como as mudanças aparentes que podemos percecionar. Continuamente.
Certo dia, nos meus trintas, num episódio fortuito, umas miúdas, certamente universitárias, trataram-me por senhor. Nesse momento percebi que havia uma grande distância entre a idade com que me sentia e a minha verdadeira idade biológica. Percebi que me havia cristalizado na idade em que os ideais surgem e me sentia mais vivo. Desde então uma década, e parte de outra, tinham decorrido sem que o tivesse divisado. Seria impensável que essa mudança, drástica, se tivesse dado naquele momento. Fisicamente, a cada momento que passou, morreram células e nasceram outras, a minha fisionomia foi mudando imperceptivelmente e o espelho lá em casa não serviu para nada, pois não ajudou! Mentalmente, a cada momento, a perspetiva que tinha das coisas, do mundo e de mim mesmo, foi mudando de forma imperceptível. De repente, porque uma jovem me trata por senhor, tudo me cai em cima!
A todos nós esta constatação acontece de alguma forma, mas nem sempre lhe damos a devida atenção e continuamos alegremente a mudar, a caminhar para a velhice e a morte sem nos darmos conta e a afirmar: “eu sou assim, sempre fui assim” firmemente convictos da nossa permanência. Até ao dia em que a realidade nos cai inevitavelmente em cima porque a doença finalmente nos tocou. Nesse momento sentimos que até nós teremos um fim e um sentimento de insatisfação se instala no nosso íntimo.
Tal como o mágico faz ilusionismo…nada é o que aparenta ser…
No século passado a ciência constatou o que o Buda afirmou há mais de 2 500 anos: todos os fenómenos são manifestações momentâneas de causas e condições e estão em permanente mudança pois as causas e condições que os suportam são, também elas, manifestações momentâneas de outras causas e condições, numa intrincada e interminável cadeia de interdependência.
Uma miragem, uma nuvem castelo
Um sonho, uma aparição,
Sem essência, mas com qualidades tangíveis.
As coisas manifestam-se, algumas são tangíveis, mas não tem essência própria, dependem das causas e condições que as suportam.
Os seres sencientes, nós, por exemplo, por muito que nos custe admitir, não passamos de manifestações transitórias totalmente interdependentes de tudo o que nos rodeia. Somos matéria (rūpa) e consciência (vijñāna). Posto de outra forma – ainda assim, resumida -, somos um agregado de 5 Skandhas, forma (rūpa), sensação (Vedanā), discriminação (Samjñā), volição (Samskara) e proliferação mental (Vijñāna).
O Buda Shakyamuni falou muito sobre os cinco Skandhas. Também se referiu a eles como os cinco agregados ou os cinco amontoados. Os Skandhas podem ser abordados, de uma forma muito geral, como os componentes que se combinam para constituir uma individualidade. Tudo o que possamos pensar enquanto ‘Eu’ é uma função dos Skandhas. Dito de outra forma, poderíamos conceber um indivíduo como um processo de Skandhas.
Quando o Buda ensinou as Quatro Nobres Verdades, começou com a primeira verdade, vida é “dukkha.” Esta expressão é frequentemente traduzida como “vida é sofrimento”, ou “desgastante” ou ainda “insatisfatória”. Porém, o Buda também usou o termo para significar “impermanente” e “condicionada”. Estar condicionado é estar dependente de ou afetado por alguma coisa.
As componentes dos Skandhas operam de forma tão coordenada que criam uma sensação de um “eu”. E essa é a génese do que no budismo é designado por Ignorância (Avidyā). A crença num ou a identificação com uma individualidade separada de tudo o resto. Isto é, a crença de que existe um “Eu” independente de tudo o resto. Fundamentados nessa crença pensamos, “Eu sou um e único. Tudo o resto não é eu. É algo diferente de mim.” Desta noção ilusa da realidade surge a visão dualista, pois se existe um “Eu”, existe também “outros”. Até aqui sou “eu”. Daqui para fora são os “outros”. Uma vez feita esta divisão, surgem duas formas de reação: ” Isto é agradável e eu quero!” e “Isto é desagradável e eu não quero!”. A esta reação dá-se o nome de Apego.
Para haver apego são necessários dois fatores: aquele que se apega e o objeto, pessoa ou fenómeno ao qual este se apega. Por outras palavras, “apego” requer auto-referência, e requer percepcionar o objeto de apego como algo separado do observador. O Buda ensinou que vermo-nos e a tudo o resto desta forma é ilusório (ignorância). Pior, é esta ilusão que constitui a causa mais profunda de infelicidade “dukkha”. É precisamente por nos vermos separados de tudo o resto que nos apegamos.
As pessoas em geral têm o preconceito de que para ser ‘budista’ temos de nos livrar de todos os apegos, amigos, família, etc. Enfim, que temos de nos separar dos objetos de apego para enveredar pela via budista. Isso é uma visão errada. Do ponto de vista budista, desapego é precisamente o oposto de separação. Vejamos: vimos atrás que para haver apego são necessárias duas coisas, aquele que se apega e o objeto de apego. No desapego, por outro lado existe unidade porque, na verdade não há nada a que nos apegarmos. Se nos unificámos com o universo como um todo, não existe nada fora de nós. A noção de apego torna-se absurda. Quem se apega a quê?
Por acreditarmos que temos existência intrínseca sob a nossa pele, e que tudo o que está fora dela é tudo o resto, percorremos o interminável ciclo de nascimento e morte (Samsāra) a perseguir uma coisa após a outra para nos sentirmos seguros, ou felizes. E só conseguimos acumular infelicidade e causas de mais infelicidade (karma).
“Contrariamente ao que algumas pessoas pensam, não há nada de errado em desfrutar de prazeres e divertimentos. O que está errado é a forma ilusa com que nos apegamos a esses prazeres, tornando-os numa fonte de sofrimento, dor e insatisfação.”
Lama Yeshe
A contemplação da impermanência de todos os fenómenos é uma excelente forma desenvolver o desapego. O Buda disse que a vida é como observar uma gota de orvalho numa folha. Quando o sol nasce desvanece-se como se nunca lá tivesse estado. Tal é a verdadeira essência de todos os fenómenos. Surgem quando as causas e condições se conjugam, permanecem enquanto as mesmas os suportam e cessam quando deixam de ser suportados por elas.
Se observarmos com atenção plena a forma como tudo se desenrola à nossa volta, incluindo nós mesmos, percebemos que a única permanência no universo é a impermanência de tudo.
Todo o universo é fluído, em constante mudança. Portanto, quando tomamos consciência de que nos apegamos a alguma coisa, devemos contemplar a sua impermanência. Apego-me a quê? Mesmo que não tenhamos presente a visão da vacuidade da nossa existência e nos vejamos como alguém, independente de tudo o resto – a tal visão dualista do “eu” e “tudo o resto” – podemos começar por contemplar que nada é permanente e que, mais cedo ou mais tarde, cessará. Então, contemplemos porque nos apegamos. Apegamo-nos porque algo ou alguém ou uma sensação nos é agradável e nos faz sentir bem, certo? E queremos repetir indeterminadamente essa experiência agradável porque nos faz sentir felizes. Reparemos, então, que até essa sensação de felicidade é efémera. Porque é desagradável perdê-la sentimos receio e queremos repetir novamente, e outra vez e ainda outra, perpetuando a nossa infelicidade. Não é de loucos? Basta parar e observar com atenção plena. Se nos habituarmos a fazer este exercício, a nossa visão do mundo e de nós mesmos vai subtilmente mudando, vamo-nos libertando das correntes da escravidão do apego e apreciando os eventos no momento, aqui e agora, enquanto permanecem, deixando-os ir quando se desvanecem e se tornam uma simples memória.
Mas, e relativamente ao que nos é desagradável? O apego manifesta-se na dualidade. Apegamo-nos ao que nos desagrada da mesma forma como nos apegamos ao que nos dá prazer. Quando temos uma experiência que nos causa desagrado ou sofrimento, tudo fazemos para não a repetir. Naturalmente, o resultado é o oposto, perpetuando o nosso sofrimento. A angústia de tanto não querer algo é sofrimento puro, tanto quanto o de querer. De facto, quando falamos de apego devemos abordá-lo na sua integridade. Já vimos que do apego surgem dois tipos de reação: atração e repulsa. Isto é apego.
Tal como o que nos dá prazer é efémero, também o que nos traz insatisfação o é. Logo, da mesma forma, devemos contemplar a sua impermanência e deixar que os eventos fluam até se dissiparem.
Não significa que nos devemos simplesmente colocar no papel de observador. Os acontecimentos têm frequentemente repercussões nas nossas vidas e devemos aprender com eles, mas não devemos deixar-nos arrastar por eles e viver no passado ou projetá-los num hipotético futuro. Até porque a própria existência, como tudo o resto, é impermanente. O futuro é apenas uma projeção mental, não existe e não sabemos como se manifestará ou se virá a acontecer. Só temos um ciclo de respiração. Quando expiramos não existem certezas de que voltamos a inspirar. É quão precária e impermanente a vida é!
Como devemos reagir a esta verdade? Bom, temos duas possibilidades: ou a abordamos de forma fatalista e niilista, entendendo que o futuro não existe, para quê viver ou, por outro lado, podemos agarrar o momento e vivê-lo com consciência plena da sua impermanência e perceber porque se desvanece, quando isso sucede.
Consciência da impermanência e apreço pelo nosso potencial humano dá-nos uma noção de emergência de que devemos usar cada precioso momento.
Dalai Lama
Todos os momentos são únicos e preciosos. Nada dura, nada se repete, tudo e fluido. Deixemo-nos fluir com o universo.
Prazer e dor são faces da mesma moeda. Não existem um sem o outro. Abraçar um e repudiar outro é dualismo. Ao abraçar ambos, perceberemos, finalmente, que nem um nem outro existem na realidade. São, como tudo o resto, manifestações temporárias e interdependentes.
O desapego conduz ao abandono dos oito dharmas mundanos:
O prazer e a dor,
O sucesso e o insucesso;
A riqueza e a pobreza
A fama e a infâmia.
Abordaremos este tema no próximo artigo.
Ngawang Ananda
Por estes méritos possa eu atingir a omnisciência
E vencer os três venenos
Possam todos os seres presos pelas ondas do nascimento, velhice, doença e morte
Ser libertados do oceano da existência.