“O mundo parece-nos como um tecido complexo de acontecimentos no qual alternam relações de diversas espécies, sobrepondo-se ou combinando-se, determinando desse modo a teia do conjunto.” – Werner Heisenberg
A vacuidade é um dos temas centrais da filosofia budista. Há mais de 2 500 anos o Buda Shakyamuni soube o que cientistas do século XX começaram a perceber com a descoberta dos quanta. Sidhartha Gautama ensinou que todas as partículas do dharmadhatu refletem todas as outras, dando-nos a entender que todos os fenómenos são interdependentes, sem existência intrínseca, independente e imutável.
“A forma é o vazio e o vazio é a forma.” De facto, se observarmos cuidadosamente, nada é perene e constante. A única constância é a permanente mudança da todos os fenómenos. A natureza dá-nos a todo o momento exemplos de vacuidade para nos lembrar da nossa própria impermanência e a dos fenómenos em geral. A mudança das estações, o nascimento, existência, o definhar e, finalmente, a extinção está inscrito em tudo o que surge a partir do momento em que se revela.
Buddha disse:
“O que nasce vai morrer,
o que foi coletado dispersar-se-á,
o que foi acumulado será esgotado,
o que foi construído desmoronar-se-á,
o que foi glorificado será humilhado.”
Tudo se anuncia como uma miragem, uma imagem ao espelho que vemos estar lá mas não tem existência em si e por si, não passando de um reflexo, manifestação de uma conjugação de causas e condições e, por isso mesmo, efémera e fluida. Todo o universo, desde a sua “génese”¹, está em permanente fluidez, mudando permanentemente. Os fenómenos manifestam-se fruto de uma cadeia inter-relacional complexa de interdependência.
Embora seja relativamente fácil compreender todo o conceito de vacuidade sob um prisma intelectual, já ter a “visão”, não é tangencial. Apenas através do treino da mente e da meditação contemplativa (shamatha e vipashyana) é possível desenvolver esta “visão”. Ela liberta-nos e faz-nos passar através da porta do quarto estreito da nossa perceção errónea da realidade para o infinito que é o nosso estado primordial, livre de conceptualismos e visões dualistas.
“É um esforço fundamental do budismo não apenas enquanto contributo para o saber, mas também enquanto prática de transformação pessoal. A análise que leva à compreensão da vacuidade pode parecer, à primeira vista, muito intelectual, mas a concretização do que dela deriva liberta-nos das nossas prisões e traz consigo profundas repercussões na maneira como interpretamos a nossa existência.” – Mathieu Rickard
Vemos todos os fenómenos sob uma perspetiva dualista de sujeito-objeto: “eu” e os “outros”, bom e mau, agradável-desagradável.
“Quando há consciência de si, há consciência do outro.
De nós e do outro nascem apego e repulsa,
E da combinação dos dois
Derivam todos os males.”
– Dharmakirti –
Ambos os estados das coisas existem numa realidade relativa mas fundem-se na realidade absoluta das coisas, no nirvana, a sua verdadeira natureza. Vemos os fenómenos de forma “cristalizada”, não percebendo que são apenas manifestações de uma interdependência extremamente complexa de causas e condições, miragens ilusórias projetadas pela nossa própria mente sobre os fenómenos. É por esse erro fundamental de interpretação que nos fechamos num casulo apertado que nos sufoca. Apertamos nós mesmos a gravata em torno da nossa garganta e nem sequer o percebemos.
Quando, fruto do estudo, da contemplação e do treino, finalmente nos libertamos para o sem-fim do dharmakaya percebemos que não existe “eu” nem “outro”, nem belo nem feio, nem bom nem mau. Percebemos que o “eu” será, quanto muito, uma forma severamente simplista de descrever o todo. Somos todos um, e todos somos unos com o universo. Somos “pó de estrelas”. A mesma matéria que surgiu no Big Bang está presente em todos e tudo permeia.
Entende todas as coisas como sendo assim:
uma miragem, um castelo nas nuvens,
um sonho, uma aparição,
sem essência, mas com qualidades que podem ser vistas.
Entende todas as coisas como sendo assim:
como a lua num céu brilhante
em algum lago calmo refletida,
ainda que para o lago a lua nunca se tenha movido.
Entende todas as coisas como sendo assim:
como um eco que deriva
da música, sons e choro,
nesse eco não há melodia.
Entende todas as coisas como sendo assim:
Tal como um mágico faz ilusões
De cavalos, touros, gatos e outras coisas,
Nada é como aparenta ser.
– Buddha –
¹ – “génese” é apenas um recurso linguístico como referência ao Big Bang. Do ponto de vista budista o universo, tal como a existência, não tem princípio nem fim. Se tudo é uma relação complexa de causa e efeito não pode existir uma causa prima, origem de tudo.